sábado, 1 de agosto de 2009

Clara

Era sem dúvida alguma uma pessoa muito estranha aquela que fora minha professora no antigo primário. Lembro-me dela tão detalhadamente após tantos anos, que a mim parece tê-la visto aqui, agora, em minha presença. De aparência esguia, seus movimentos pareciam acontecer como em câmera lenta. Sua postura denunciava um ar de superioridade, diria até aristocrático, como se não pertencesse a esse mundo, a essa classe, que luta arduamente, corajosamente pelo pão de cada dia; que sonha, e que ainda têm esperanças de um porvir mais generoso para com os seus. Possuía um olhar penetrante, magnético, estampado naquele semblante anestesiado, aparentemente inerte a quaisquer que fossem as emoções apresentadas. Ninguém no bairro sabia de onde vinha, apenas que morava naquela pequena casa da rua Afonso Pena, caiada de um azul desbotado, e que trabalhava naquela pequena escola interiorana.
Quando soava o sinal e todos iam para a sala de aula, ela já estava lá nos aguardando sentada em sua cadeira olhando em direção à janela como se estivesse esperando por alguém que viesse daquela direção. Nos sentávamos em silêncio esperando pelo seu olhar, e após alguns minutos, parecia sair daquele transe e a aula transcorria normalmente. Exceto pelos momentos em que por duas ou três vezes, abria um pingente preso a uma fina corrente dourada.Admirava-o como quem está frente ao maior tesouro do mundo, com aquele olhar alucinado, incrédulo, e com as mãos trêmulas fechava-o logo em seguida apertando-o contra o peito que subia e descia descompassadamente.Assim iam-se passando os dias. 
Estávamos quase no final do ano. Já pensávamos o quanto iríamos brincar naquelas férias tão esperadas por todos; nos presentes que ganharíamos no Natal, mas que na maioria das vezes era o que precisávamos realmente ter: um par de sapatos novos ou um vestido, raramente esse presente poderia ser um brinquedo. Mas isso não nos impedia de sonhar, e mesmo se não acontecesse nos conformávamos com o que nos pudessem oferecer às custas de muitos sacrifícios. 
E em meio a tantos sonhos, eis que num dia como tantos outros naquela pacata cidade, algo inesperado acontece. Ao chegarmos na sala de aula não vemos a cena que estávamos tão habituados a ver. A cadeira estava vazia. Sentímo-nos perdidos. Não sabíamos o que fazer. Nesse momento, a diretora entra com uma professora na sala e diz aos alunos:
__ A professora Clara não pôde vir hoje, não sabemos o motivo, por isso, a professora Ana Maria ficará como substituta. Após essa declaração ficamos aborrecidos, pois, gostávamos muito da professora Clara.
Quando terminou a aula, eu que estava muito preocupada com o devia ter acontecido para que ela faltasse, resolvi que ao ir para minha casa passaria antes pela rua em que ela morava para ver se descobria alguma coisa sobre o motivo de sua ausência.Ao chegar, vi que sua casa estava com a porta da sala entreaberta. Aproximei-me. Nesse instante vejo a sua vizinha, Dª Ângela, e o farmacêutico conhecido como Sr. Eugênio. Fiquei apreensiva. Cheguei mais perto da porta e fiquei observando o que se passava. Em uma poltrona marrom, no canto da sala, estava Dª Clara sentada; a mão no peito segurando o pingente. Na mesinha ao lado da poltrona forrada com uma toalha de cetim verde havia um pequeno porta-retrato seu, e ao lado deste, estavam um copo e um pequeno vidro vazio. Não atinei de início do que se tratava. Só percebi a gravidade da cena, quando o Sr Eugênio balançou tristemente a cabeça e Dª Ângela saiu aos gritos e prantos pela rua. Senti minhas pernas amolecerem e meu coração disparar. Lágrimas molhavam meu rosto e fui dominada por uma tristeza que fazia doer meu coração. Cambaleando aproximei-me daquela que mesmo sendo muito estranha, era de minha parte muito admirada. Beijei-lhe as mãos e não sei dizer como, mas o pingente que segurava se abriu. Nele, desvelou-se a imagem refletida de um casal.
Era para ele que em seus momentos de angústias e saudades, buscava avidamente olhar. Aquele, a quem amou demais e que seu coração jamais esqueceu. Aquele, que ela sempre esperava por trás da janela ver chegar. Aquele, que por sua ausência desistiu de viver.










"A necessária promoção à criticidade não pode ou não deve ser feita à distância de uma rigorosa formação ética ao lado da estética. Decência e boniteza de mãos dadas.

Paulo Freire, 1997

SIMPLES PRIMAVERAS

Nós apenas conseguimos voltar ao passado revendo nossas memórias. E escrever sobre a minha infância (sem que eu me desse conta disso no início), não sentindo um certo saudosismo foi inevitável.
Era uma época em que o tempo parecia caminhar num compasso de tic-tacs mais lentos, e as primaveras de meu olhar eram mais floridas e perfumadas.
A família era numerosa: meus pais, Mário e Antonia, e mais seis irmãos. Eu era a caçula dessa genética ítalo -hispano -germânica.
Vivíamos em um bairro muito pouco povoado na época. As ruas eram desprovidas de asfalto e não possuíam mais que cinco ou seis casas.Havia uma grande área de mata verdejante no final da rua com um lago cheio de peixinhos. 
Era lá, que eu e um dos meus irmãos íamos às vezes para caçar passarinhos (sinceramente não me agradava quando o pobrezinho caia na arapuca...).Ele não gostava muito que eu fosse junto com ele, já que era quase impossível me manter em silêncio por muito tempo. Sendo assim, o inevitável acontecia: ele não pegava nenhum pássaro na sua arapuca! Mas,ao mesmo tempo em que ele ficava muito bravo ao final da “caçada”, eu me sentia muito feliz! Já explico. Primeiro, eu não via o bichinho preso com aquele ar de estranheza e tristeza; segundo, o que mais gostava era de estar perto de meu querido irmão. 
Morávamos em uma casa pequena e muito modesta, para se ter uma idéia, o seu piso era de terra batida.No quintal não existiam muros, e sim cercas feitas com caules de pequenas árvores e cobertas por ramos de maracujá silvestre. (que delicia!) que meu pai buscava nos arredores do bairro nos seus dias de descanso, quando não estava à frente do enorme forno da empresa de laminação na qual trabalhou por muitos anos, e que foi diretamente, responsável pelo agravamento de seu problema pulmonar.
No fundo do quintal havia bananeiras (que eram muito apreciadas por abelhas, e estas pelo meu pescoço!), uma pequena horta com alface, almeirão e tomates. Tínhamos também galinhas, uma era especial, não me recordo o seu nome, mas possuía uma característica única. Única mesmo. Era perneta! Viveu muito tempo devido à promessa feita por minha mãe a São Lázaro. Ela não seria comida no almoço de domingo! Sua morte seria por causas naturais. Por falar em animais, como não falar da Palmeira? Ela era uma égua branca enorme, de olhos meigos e amendoados. Quando teve sua primeira cria, um lindo potro, meu pai deu-o de presente a meu irmão Zé. Parecia ensinado! Bastava meu irmão assoviar que ele vinha de onde estivesse galopando. Sem contar dos gatos, cachorros vira-latas abandonados que sempre eram trazidos por meu irmão Maninha que se apiedava de todos, e que através de muita persuasão convencia minha mãe a ficar apenas com mais aquele coitadinho que seria o último, assim o prometia.E claro, nunca cumpria (acho que minha mãe tinha uma péssima memória em relação a promessas...).
Ah! Se eu sequer imaginasse as mudanças que aconteceriam após alguns anos... Teria parado os tic-tacs do tempo ali, naquela primavera...